Além da Saudade: Saúde Mental do Brasileiro no Exterior

 

"A saudade pode ser um lugar de dor, mas também de reconexão com quem somos — e quem estamos nos tornando." Ana Claudia Quintana Arantes.

1. Introdução: quando migrar vai além da mudança de endereço

Hoje, mais de 4 milhões de brasileiros vivem fora do país — um número que representa histórias de coragem, esperança, e também desafios profundos. Migrar não é apenas uma decisão prática ou econômica: é uma travessia subjetiva que afeta a forma como cada pessoa se sente no mundo.

Neste artigo, proponho uma reflexão sobre os efeitos emocionais da migração, unindo a escuta da psicanálise com a percepção da fenomenologia.

2. Os desafios psíquicos de morar fora

Luto Inacabado: o que ficou para trás ainda vive em nós

Sentir saudade é mais do que um sentimento passageiro — muitas vezes, é o reflexo de um luto não elaborado. Não se trata de um luto pela morte, mas pela perda do cotidiano conhecido: o idioma nativo, os vínculos afetivos próximos, o cheiro do café feito na hora.
Na psicanálise, o inconsciente não diferencia realidade de símbolo com a mesma lógica da razão. Por isso, mesmo vivendo um “bom momento” no exterior, é possível sentir um vazio profundo — o de quem precisou abrir mão de pedaços do próprio chão.

Crise de Identidade: entre dois mundos

Migrantes muitas vezes relatam a sensação de "não pertencer nem lá, nem cá". O Brasil vai se tornando uma lembrança distante, mas o novo país ainda não é um lar emocional.
A experiência migratória pode desorganizar temporariamente o “self” — especialmente se faltarem redes de apoio ou espaços de escuta. Como dizia Winnicott, a constituição do sujeito depende do ambiente. Quando esse ambiente muda drasticamente, algo em nós também precisa se reorganizar.

Solidão e isolamento emocional

Mesmo rodeado por pessoas, o migrante pode sentir-se só. A barreira do idioma, a diferença de valores e a idealização da vida que ficou para trás criam um abismo emocional.
Conversas com familiares no Brasil muitas vezes parecem "fora do tom" — ou se tornam espaços para manter aparências. A dor da solidão, muitas vezes, não encontra palavras.

3. Fatores que intensificam o sofrimento emocional

A cobrança pelo sucesso

"Você foi pra fora, tem que dar certo!" — essa frase, ainda que não dita, costuma pesar sobre quem migrou.
Essa pressão pode alimentar a síndrome do impostor, especialmente no ambiente de trabalho. O medo de “fracassar” faz com que muitas pessoas suprimam o sofrimento, adoecendo em silêncio.

Diferenças culturais não previstas

O ideal do "sonho europeu" ou "canadense" nem sempre corresponde à realidade. Burocracias, clima hostil, frieza nas relações... Tudo isso impacta não apenas a mente, mas o corpo.
Na abordagem fenomenológica, o corpo também sente o deslocamento: o inverno rigoroso pode parecer um "congelamento interno", assim como a ausência de pequenas rotinas brasileiras pode gerar uma sensação de desencaixe.

4. Caminhos de cuidado e reconexão emocional

Crie rituais que reforcem sua identidade

  • Cozinhe pratos que te conectem à sua história.

  • Ouça músicas brasileiras que tragam memória afetiva.

  • Recrie, no seu tempo e estilo, símbolos da sua cultura.

Reavalie seus círculos de apoio

  • Busque grupos com interesses em comum (não apenas grupos para "reclamar do país").

  • Reforce laços com pessoas que validem sua experiência sem julgar.

Terapia com escuta para migrantes

O acompanhamento psicológico oferece um espaço seguro para:

  • Elaborar os lutos da migração;

  • Reconstruir o sentimento de pertencimento;

  • Trabalhar feridas antigas que podem se reativar na experiência de viver fora.

Exercício prático: Mindfulness da saudade

Escreva uma carta (que não precisa ser enviada) para alguém ou algo que você deixou.
Fale sobre o que sente, o que mudou, e o que deseja preservar em si.
Esse exercício ajuda a nomear emoções e criar continuidade emocional — mesmo em outro território.

5. Conclusão: migrar é um processo que merece cuidado

Morar fora é, muitas vezes, um ato de coragem — mas não precisa ser um ato solitário.
Cuidar da saúde emocional durante esse processo é tão importante quanto aprender o idioma local ou encontrar trabalho.

💬 “A saudade é o que nos torna humanos. Ela é a lembrança do que fomos, do que tivemos e do que perdemos. Mas também é a força que nos faz seguir em frente, em busca do que ainda não encontramos. A saudade dói, mas é ela que nos lembra que amamos, que vivemos, que fomos felizes. Sem ela, seríamos apenas sombras de nós mesmos, perdidos em um presente vazio.” José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis.

📚 Referências utilizadas

  • Winnicott, D. W. (1965). O ambiente e os processos de maturação.

  • Freud, S. (1917). Luto e melancolia.

  • Calligaris, C. (2000). Cartas de um psicanalista à sua filha.

  • Bachelard, G. (1957). A poética do espaço.

  • Camus, A. (1942). O estrangeiro.

  • Han, B.-C. (2015). A sociedade do cansaço.

  • Saramago, J. (1984). O Ano da Morte de Ricardo Reis.

  • Arantes, A.C.Q. (2021). A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver.

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